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Como falam os afásicos?

Anomia

A afasia de Heloisa

Heloísa trabalhava como bibliotecária no Tribunal de Justiça de São Paulo quando, em 12 de agosto de 2010, aos 48 anos, foi internada com quadro de cefaleia e confusão mental súbito. Ela sofreu o que se conhece por hemorragia subaracnóidea, um subtipo de AVC, proveniente da ruptura de aneurisma em artéria cerebral média esquerda (o aneurisma é uma dilatação anormal na parede de uma artéria do cérebro).

Os médicos optaram por clipagem do aneurisma (procedimento para fechar a artéria), mas Heloísa precisou fazer craniectomia descompressiva, pois a pressão intracraniana (PIC) estava alta. Heloísa evoluiu com vasoespasmo cerebral (estreitamento ou contração da parede da artéria que leva à isquemia cerebral). Ficou afásica, apresentando ainda hemiplegia direita.

Ainda na internação, Heloísa só falava “dá” e, às vezes, emitia “é”, “isso”, “não gosto”, “sim”. Tentava se comunicar com gestos e ficava nervosa quando não era compreendida. Apresentava parafasias fonêmicas e fala agramática. A compreensão oral estava preservada.

Conheci Heloísa em abril de 2011. Seus cabelos ainda estavam bem curtos, evidenciando a cicatriz cirúrgica resultante de uma cranioplastia que ela havia feito em 24 de dezembro de 2010. Mas ela tinha novos planos para quando seus cabelos novamente crescessem e ela pudesse retomar sua vida com a afasia. Aliás, Heloísa parecia não se intimidar com sua afasia. Sua adesão à terapia foi imediata. Diante da dificuldade de fala, no lugar da frustração e do isolamento muito comuns, Heloísa “se virava” e usava gestos, escrita, desenho, prosódia, tudo para se fazer entender.

Anomia como trabalho de construção da significação

Uma das características da fala de Heloísa é conhecida como ANOMIA, que geralmente é definida como a dificuldade de evocar, espontaneamente, uma determinada palavra em contextos tanto de fala espontânea, como também de repetição e de evocação. Na perspectiva sociocognitiva tomamos a ANOMIA não como dificuldade de evocação per si, mas como evento linguístico capaz de evidenciar os mecanismos linguístico-cognitivos dos quais o afásico lança mão no trabalho de construção da significação.

São caminhos diversos – escrita, desenho, gestos – acionados nos processos de referenciação. Veja, a seguir, a questão da ANOMIA com situações ocorridas durante a interação entre Heloísa e a fonoaudióloga AT. Em maio de 2012, Heloísa conta a AT que sua empregada havia faltado no dia anterior por causa da greve do metrô. AT sabia que a mãe de Heloísa estava passando uns dias em sua casa e pergunta como Heloísa se virara sem a empregada. Em junho de 2012, Heloísa e AT conversam sobre a Praça Benedito Calixto e seus arredores. Heloísa fala de um restaurante que fica entre um restaurante japonês e um restaurante …

Almoço

H: arroz integral … carne … – gestos de cortar em pedaços pequenos (que AT infere como sendo “picadinho”) – … salada.
AT: Salada de quê? – Heloísa não sabe referir.
AT: É verde? – Heloísa mostra a cor do calendário sobre a mesa que é bege, amarelo claro.
AT: Batata?
H: Não … perto.
AT: Mandioca?
H: Quase … fala mais! – AT pede para que Heloísa faça um desenho. Ela faz um desenho que tem a forma de um coração.
AT: Maçã? Não … é um legume né?
H: É comida árabe … uma delícia … tira a casquinha …
AT: Grão de bico?
H: Exatamente!

Restaurante

H: Japonês não … japonês não … outro!
AT: Italiano?
H: Não …
AT: Qual tipo de comida?
H: Japonês não …
AT: Chinês?
H: Não … Fala! Fala!
AT: Francês?
H: Não … //pega o papel e escreve BH//
AT: Mineiro?
H: É!

Anomia: as faxineiras de Heloisa

Você vai assistir a dois episódios da interação de Heloísa com a fonoaudióloga AT.

O tópico é o mesmo: as faxineiras de Heloisa.

Observe a linguagem de Heloísa em dois momentos distintos de sua reabilitação.

Em abril de 2011, início da terapia de Heloisa com a fonoaudióloga AT, elas conversaram sobre empregadas e as atividades de Heloísa como dona de casa. Em março de 2013, Heloisa comentava sobre a evolução de sua fala, e AT lembrou à Heloisa que havia uma gravação dela feita em 2011. Heloisa, após assistir ao vídeo, retomou o tópico “empregadas”, explicitando, em um novo registro, algumas questões que ela agora entendia como não bem explicadas em 2011.

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