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Grupo Pauliceia

Cozinha Experimental da Memória

Eu me recordo

A psicóloga Antonietta Donato e eu, a fonoaudióloga Ana Lucia Tubero, colocamos a mão (e o coração) na massa juntamente com os participantes do Grupo Pauliceia neste projeto. São lembranças, recordações, evocações e memórias associadas à cozinha, à culinária, às refeições, ao ato de cozinhar e preparar os alimentos: não por acaso, uma das integrantes do Grupo Pauliceia – a Bia – batizou o trabalho de Cozinha Experimental da Memória.

“Eu me recordo, reaproprio-me e reciclo minhas lembranças”.

Do projeto de culinária à Cozinha Experimental da Memória

A Antonietta fez a adaptação para a área de Fonoaudiologia de um projeto anterior efetuado na área de Psicologia com intenção de promover a auto-estima através do resgate de habilidades e comportamentos perdidos ou esquecidos adaptados às possibilidades atuais. O projeto baseia-se em algumas premissas básicas:

Tarefas manuais apresentam ao cérebro e às atividades cognitivas desafios que podem resultar em sentimentos de potência, utilidade e capacidade de intervenção no seu meio ambiente. No caso, optou-se por executar receitas culinárias originárias da infância ou de uma época remota da vida dos participantes.
Memórias afetivas remotas podem ser usadas como ferramentas apropriadas para construir o cenário e o script focados no objetivo proposto, criando um palco que possibilita a dinâmica e vivências promotoras de resgate e transformação.
A tarefa em grupo propicia situações de socialização, lazer, troca de informações e o compartilhar de vivências que enriquecem e aumentam o espaço de vida de seus participantes.

Omelete de Amoras:
Ingrediente básico na Cozinha Experimental da Memória

O projeto teve várias etapas que foram se configurando a partir da prática com o grupo. A partir de vários encontros fomos constituindo nosso fazer culinário, nossa memória culinária. Começamos com um texto de Walter Benjamin – Omelete de amoras – como ponto de partida da experiência renovadora de uma nova receita antiga.

As histórias de culinária e suas memórias

Cadernos de receitas, livros antigos de culinária, Dona Benta em várias edições, reescrita de receitas trazidas pela memória e recordação, ida ao Mercado Municipal de São Paulo – esse foi nosso material teórico de trabalho.

O molho de tomate e a macarronada da mamma Chiesa retrabalhadas pela Rosa em seu fusilli à moda antiga feito ainda com arame. A rabanada da vovó Florinda da qual se recorda os sabores dos dias de Natal e a formidável calda. A torta de palmito feita para os amigos que se reuniam em Ibiúna nos finais de semana junto à lareira.

A língua ao Madeira que traz as memórias de uma infância acordando de madrugada em Poá e levando as verduras plantadas pela mãe até a estação de trem, para serem vendidas em São Paulo, e do vendedor de tripas que anunciava cantando: Triiiiipaaaaas! Triiiipaaaaas! – que eram vendidas num carroção pelas ruas de São Paulo.

O desafio do mingau de aveia feito por uma criança para o tio com dedicação e empenho de adulto. Os bem casados da Olímpia feitos no casarão da Vila Kyrial onde o avô reunia gente importante nos saraus literários. O sorvete de flocos com coco feito por alguém que a partir dos 80 anos decidiu que só quer saber de rir e de brincar. O purê de batatas com noz moscada lembrado pela mãe e feito pela avó, mas o filho quer saber mesmo é do pastel de carne.

E como a cozinha é prática…

Fomos para a cozinha com a Rabanada da Clay, com a Torta de Palmito da Cleide, com a Pastelaria da Cida, com a Casquinha de Siri do Madeira, com o Sorvete do Ernesto, com o Pão da Dona Alice. Tomamos a Pastelaria da Cida – com pastéis de carne e de palmito – para ilustrar as etapas de organização, preparação e desenvolvimento de cada projeto da Cozinha Experimental da Memória.

O preparo de uma refeição por um grupo de pessoas afásicas e não afásicas

No preparo de uma refeição qualquer nem sempre a linguagem falada tem papel relevante: podemos cozinhar em silêncio. Mas como estamos em um grupo e realizando uma tarefa em grupo, a linguagem falada tem papel importante. Mas em se tratando de um grupo de afásicos, todo e qualquer tipo de linguagem – verbal e não verbal – torna-se relevante: fala, gestos, apontamentos, mímica facial, entoação de voz, movimentos do corpo.

Por ser um grupo temático com afásicos, é necessário considerar:

  • Questões linguísticas – associadas às dificuldades de expressão e de compreensão, tanto oral como escrita.
  • Questões práxicas – associadas ao planejamento / programação e à execução de tarefas: sequencialidade de etapas, sucessividade de etapas, avaliação de cada etapa.
  • Questões motoras – associadas à hemiplegia e hemiparesia, sobretudo da mão direita e braço direito em indivíduos destros.

É necessário lidar adequadamente com o tempo deles para a execução de tarefas, pensando não apenas no tempo linear, mas também no tempo de programação e execução da atividade em função dos problemas linguísticos, práxicos, cognitivos e motores. É preciso intervir somente quando se apresentar a oportunidade de “corrigir” – aqui a noção de erro se traduz em possibilidades – ou desconstruir um mito negativo.

Diante do erro (ou possibilidade):

Aceitação e abrandar o superego rigoroso que nos impede de agir, de prosseguir. Para os afásicos, um agir no passado e do passado que surge como o mito do ser idealizado – falante ideal, cozinheiro ideal – existente antes do AVC.
Valorizar aquilo que se consegue construir ou produzir hoje a partir das experiências vividas e conhecimento prévio apesar da afasia e da constrição de vida que ela aparentemente impõe.
Reapropriar-se daquilo que parece pertencer ao passado e reformulá-lo com a memória e os sabores da vida atual, redescobrindo-se.

Não é o mesmo pastel que eu fazia para os meus filhos, mas sou capaz de reinventar um pastel para os meus netos e de reinventar-me apesar da afasia.
– Cida

Quer conhecer mais sobre a cozinha experimental da memória do Grupo Pauliceia?

Assista ao vídeo e veja as fotos do Grupo Pauliceia: Cozinha Experimental da Memória que resume cada um dos projetos culinários da cozinha do Grupo Pauliceia: Rabanada, Torta, Pastel, Casquinha de Siri, Sorvete, Pão.

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